quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Quando se fala com as estrelas...

      Sentada na grama úmida e gelada olha as estrelas. Eram muitas. Cada uma contava uma história. Eram  fatos de sua própria história. E todos começavam com "e se...". "E se tivesse aceitado aquele emprego e se mudado?...", "E se não tivesse se fechado tanto para o amor?", "E se tivesse perdoado?", "E se tivesse pedido perdão?". Eram tantas hipóteses. Tantas possibilidades. Tanto tempo perdido... Tanto vazio dentro de seus sonhos.
      Se tivesse parado naquela banca para pedir informação ao rapaz não teria se perdido e andado por duas horas sem nunca chegar a sua reunião agendada com o gerente do banco. Se não andasse olhando para baixo, teria reparado que o rapaz da banca não tirava os olhos dela enquanto ela passava. "E se ele fosse o grande amor da minha vida?" Uma estrela brilhou no céu.
      Outra estrela brilhou do outro lado e ela questionou o pensamento anterior. "E se, na verdade, o grande amor da minha vida fosse o Lucas", o cara em quem deu um fora alguns anos atrás por pensar que o amor dele não era perfeito o suficiente. "E existe algo perfeito? Quanto é o suficiente?" Mais tarde aprenderia que o amor tem pêlos, verrugas, espinhas e lugares que cheiram mal. Nada dá certo quando não se aprende a compreender, relevar e não exigir tanto. Tinha tantas expectativas desleais... Mais um ponto brilhou. Dessa vez era a lua refletida na lágrima que descia pelo seu rosto.
       E se não tivesse se importado tanto com o recém abuso de drogas de seu irmão e aceitado aquela proposta de emprego na Alemanha? "Tanta coisa poderia ter acontecido por lá..." No fim, não foi capaz de impedir que ele vendesse tudo o que havia na casa e sumido no mundo sem se importar com ninguém.
       Outros pontos brilharam no céu e ela pensou nos rumos que sua vida poderia ter tomado se não fosse o medo, se não fosse a insegurança, se tivesse coragem de dizer o que realmente quer, o que de fato pensa. "E se tivesse dito não?", "E se tivesse dado mais atenção ao que disse minha mãe?", "E se tivesse perdoado meu pai?", "E se não tivesse emprestado aquela grana que seria a perdição do meu grande amigo?". Tantas frustrações... Ficou ali por horas contando todas as histórias que poderiam ter sido, tudo o que não foi.
      E agora já havia deixado de acreditar. Havia jogado fora todas as chances. Estava velha. O peso de seus 40 anos fazia um risco fundo ao redor de seus olhos. Eram os 40 anos ou era a tristeza da vida que nunca tivera? Agora chorava porque não tinha mais jeito, já havia perdido tudo. Estava sozinha. Na sua vida não havia mais ninguém. "E se eu desistisse agora?"
         ...
       Então uma outra estrela apareceu no horizonte. Era uma estrela nova, brilhava pela primeira vez. Ela estava com raiva! Mandou que a mulher se levantasse! Disse pra ela: "e se você voltar e pedir perdão? E se conhecer novas pessoas? E se construir um grande amor? E se investir na carreira profissional que realmente ama? E se tentasse mais uma vez?" A estrela estava tão brava que sua cor foi ficando meio alaranjada. A mulher ficou com medo. Sempre recuava quando lhe olhavam diretamente assim, com a cara fechada. Mas começou a pensar em tudo o que a estrela lhe dissera... Até que fazia sentido. Até que tinha razão. Afinal, enquanto houvessem dias para viver, poderia haver uma nova chance. Se levantou.
      "E se eu tivesse esperança de novo?"

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ding dong

                Era uma noite chuvosa quando ele finalmente tocou a campainha. “Até que enfim”, ela pensou enquanto se levantava de um pulo do sofá e ia pentear os cabelos desgrenhados que já tinham desistido de esperar. Precisaria também trocar de roupa. Aquela camisa branca, larga, com aquelas marcas de suor embaixo do braço mostrava que ela já tinha perdido as esperanças em sua chegada. Já fazia tanto tempo desde que se separaram pela primeira vez... Colocou um sutiã. Tirou aquele shorts de time de futebol que fora de seu irmão. Vestiu a roupa nova que estivera a tanto tempo esperando naquela gaveta empoeirada.
                Pegou o perfume. O mesmo que ele lhe dera de presente de aniversário quando jurara que nunca iria embora. Se lembrou então de todas as promessas feitas. Todas quebradas. Do tempo que passara desde que trocaram o primeiro olhar na fila do supermercado. Já nem se lembrava mais do motivo que os tinha separado, tudo o que importava era que agora ele estava na porta. A lembrança de todas aquelas lágrimas derramadas a lembrou que já fazia algum tempo que não lavava o rosto. Pensou em passar um batom, o mesmo que manchara aquela taça de vinho do primeiro encontro. Tantos risos foram trocados entre o cardápio e a conta que ela realmente chegou a acreditar que seria feliz para sempre. Enquanto ele escolhiam a sobremesa, ela escolhia mentalmente o vestido de noiva, o lugar e os padrinhos.
                Achou melhor passar uma maquiagem para disfarçar toda a vida que o tempo tinha levado de seu rosto. Talvez até um colírio para dar um brilho artificial ao olhar opaco e cansado. A campainha tocou pela segunda vez. Não tinha tempo para isso.
                A casa estava toda revirada. Parecia que ninguém entrava ali há meses. E não entrava mesmo. Ninguém vivia ali. Ela só passava. Só existia. Só respirava. Esperando o dia em que nem isso fosse mais necessário fazer. Mas agora ele estava na porta. Passou por todas aquelas roupas e sacos de salgadinhos vazios, empurrando para trás da estante as latinhas de refrigerante amassadas e acendendo algumas luzes no caminho.

                _ São R$ 13, 60 – disse o entregador de pizza
                _ Ah.. só um momento... – e entrou para pegar o dinheiro.

                Quase que ele deixa as pizzas ali na soleira da porta como cortesia da casa e paga por elas com o próprio salário. Tinha pena daquela mulher. Já tinha ouvido pela vizinhança as histórias daquela velha que havia vivido anos cheios de felicidade, com aquele que parecia ser o grande amor de sua vida. Hoje, sozinha, não conseguia se lembrar que o tinha perdido há três anos atrás por uma crise de loucura após a falência dos negócios. Um tiro na cabeça dado no meio da cozinha, no meio do dia. Ele já não ligava mais pra nada. Ela o encontrou quando voltou da quitanda, pensando no prato preferido dele, que faria aquela noite para comemorar os 38 anos de casados e em tudo o que fariam depois. Superariam o problema financeiro.
                Os vizinhos ouviram gritos pouco depois que ela colocou os pés em casa. Eles a ouviram gritar o primeiro dia todo. Todos os dias da primeira semana. Até que depois de um mês não ouviram mais nada. Ela desistira de gritar e de viver. Só se arrastava. O único que ia até a sua porta era o entregador de pizzas, que sempre esperava muito até que ela finalmente o atendesse, bem vestida e perfumada. O olhar de decepção estampado em seu rosto todas as vezes que o recebia deixava claro que ela havia se esquecido. Que ela ainda esperava. Que ela estava sozinha.
                Deixou as pizzas no chão e foi embora. O preço que ela pagava já era alto demais.